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“Hoje a boca fala do que está cheio o coração”

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Nos despedimos da mãe África com um sorriso de alegria na boca.
E hoje a boca fala do que está cheio o coração!
(Depoimento de Felipe Torres)

Eram aproximadamente 6 horas da manhã.
O relógio da fome tocou.

Lembrei-me num átimo de dona Maria. Maria que chegava a ficar 2 dias sem comer uma refeição. Maria mãe sozinha de 4 crianças. O filho mais velho, contando algo em torno de 10 anos, deixou de ir a escola para trabalhar pastoreando gado. O pagamento: um prato de chima por dia. O bastante pra sobreviver.

Lembrei da mãe Nora. Mãe de 7 filhos, vendia carvão.
Conseguia vender um saco de carvão a cada 3 meses, em média. Mãe de 7 filhos. Lembrei-me das ratazanas secando no teto da cabana.
“Não… Elas são… são pro cachorro”.

Lembrei de quando Marcia jogou alguns ossos pra um cachorro e foi advertida por uma senhora: Não jogue ossos pro cachorro, pode dar pra gente.

Rememorei a vózinha que nos foi apresentada por Malfa. Malfa soro positivo, amor positivo, bondade positiva, um milagre. Malfa, quando recebeu a notícia que ganharia uma nova casa, sorriu. Sorriu rapidamente, tomou a mão do Wagner e levou o grupo até uma senhora. As mãos trêmulas, os olhos cegos choraram. A senhora era fome e Malfa, um milagre.

Lembrei-me de Milagrosa. Milagrosa, criança com câncer terminal, mandada para casa pra ser encontrada pela morte perto da família. Lembrei do seu sorriso quando recebeu uma balão amarelo com um sorriso desenhado.
Desconforto desenhado no peito, vazando pelos olhos.

Recordei o desconforto das viagens, o trepidar das janelas de vidro da van, as pernas encolhidas por sobre a roda, a companhia das baratas nos banhos de caneca, os não banhos, a sede que não parava, a enorme e devastadora sensação de impotência, o suor quente pingando na terra seca, as palavras de Wagner: é preciso um pouco de incômodo.

Mas os sorrisos, como o do balão. Lembrei dos sorrisos e desse estranho e abismal paradoxo.
A dor que sorri.
As cantorias de Matuba, de Chimbembe, da saia de pano pra ressaltar os movimentos, da encenação de “O Bom Samaritano”, da música que dizia que a fraternidade corta a fome, corta o mal, das palavras inspiradas de Wagner ao fundar uma nova unidade: Estou feliz porque hoje encontramos mais uma parte da nossa família!

Recordei o culto dos Zaione e a alegria nas feições de João, o padeiro e da gratidão de todos que nos abraçavam e beijavam na entrada. Lembrei do calor daquela sala que abrigava o culto, o cheiro forte, a vela acessa, a prece em conjunto que lembrava pra mim o Pentecostes, a experiência da gratidão, de sentir bater o coração no peito.

Lembrei de tantos corações maravilhosos! Da loucura e entrega do doctor Luciano, da doçura de Angela das danças de Ana que faziam os nativos se divertirem, das imitações de Silvestre… As rodas de conversa debaixo das árvores de Muzumuia, as palavras sábias do professor: “essa brisa é testemunha, o espírito sopra onde quer”. Coração maravilhoso de Dora cuidado, de Armando força, liderança, autoridade, de Wagner serenidade, de Osvaldo simplicidade, inteligência!

Lembrei da aula que tive no último dia, ouvindo as palavras sábias de Osvaldo, a força da sua voz, do seu canto, do seu coração que me fez chorar pela última vez naquelas terras, quando entendi que ele dizia mesmo cuidar de 50 crianças órfãs com o seu salário de auxiliar de pedreiro: “Essa é a causa do meu coração”, “O mundo não vai ser transformado por pessoas que querem o dinheiro. É preciso pessoas que se sintam felizes ao verem os outros felizes”.

Nessas memórias remexidas…
O relógio da fome tocou.
Para mim, a comida à distância de alguns passos.
Para muitos deles, não.

Felipe Torres
Caravana 27 de outubro 2016

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